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30 anos do ECA: Da Doutrina da Situação Irregular à Proteção Integral

17/07/2020 as 5:09

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Pollyanna Labeta Iack*

O momento em que vivemos, de recrudescimento das violências, do racismo e do autoritarismo, não pode diminuir o valor de celebrarmos os 30 anos do Estatuto da Criança e do/da Adolescente – ECA.

Lembrar a construção do ECA é trazer à memória uma história de luta dos movimentos sociais, que no exercício da democracia criaram um instrumento que foi base de sustentação à instituição de um Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do/da Adolescente – SGD, Resolução nº113 do Conanda.

A Doutrina da Situação Irregular, advinda dos Códigos de Menores, é substituída pela Doutrina da Proteção Integral instituída pelo ECA, visando que crianças e adolescentes deixassem de ser objetos de intervenção para serem compreendidas como sujeitos de direitos e garantindo igualdade de direitos a todas as crianças.

As medidas socioeducativas (MSE) descritas no Estatuto no Capítulo IV não exclui os/as adolescentes a quem se atribui a autoria de atos infracionais de receberem medidas protetivas. O único direito limitado durante o cumprimento da medida é a liberdade (ir e vir).

Posteriormente, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE foi regulamentado pela Resolução nº119/2006 do Conanda, se constituindo como “um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa” e “inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todas as políticas, planos e programas específicos de atenção a esse público” (SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS; CONANDA, 2006, p. 13).

Em 2012, foi publicada a Lei 12.594 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional.

Contudo, reconhecer os avanços do ECA e de todo o ordenamento jurídico que o sucede não nos impede de analisar criticamente sua efetivação e a mudança de cultura no atendimento dos/das adolescentes a quem se atribui a autoria de atos infracionais.

Ano após ano, o Levantamento Anual do Sinase vem demostrando um crescimento do número de adolescentes no sistema socioeducativo prioritariamente nas medidas privativas de liberdade. No Estado do Espírito Santo não é diferente. Em 2003, havia apenas uma unidade socioeducatica (UNIS) com 116 adolescentes, hoje chegamos à marca de 13 unidades socioeducativas, com uma população de 570 adolescentes.

Importante demarcar o perfil dos sujeitos dessa política: 99% do sexo masculino, 74% com idade entre 16 e 18 anos, 60% estão entre o 6º e 9º ano do Ensino Fundamental, 94% são negros. Quanto ao ato infracional praticado: 44,7% são de crimes contra o patrimônio, 28,4% relacionados à lei antidrogas e 17,4% relacionados aos crimes contra a vida. (OBSERVATÓRIO DIGITAL DA SOCIOEDUCAÇÂO, 2020).

Apesar do ECA apresentar seis medidas socioeducativas[1], a internação (Art. 121), que é sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, ainda é a mais aplicada. A aplicação desta medida não pode ser banalizada, pois deixa profundas marcas negativas nos sujeitos que passam por ela.

Com vistas a conhecer essa experiência vivenciada, realizamos uma pesquisa com os adolescentes egressos da medida socioeducativa de internação a fim de compreender como estavam ao retornar para a comunidade, identificar os fatores de risco e proteção a que tiveram acesso, dentre outros elementos (LABETA-IACK, SIQUEIRA, Et. Al., 2017).

Os resultados apontaram um quadro de desproteção social. Para Tejadas (2008), a vulnerabilidade social aproxima o sujeito de outro tipo de vulnerabilidade, entre elas, a penal. Assim esses adolescentes passam a ser alvo do Sistema de Justiça.

E foi o que observamos com a pesquisa. Dos entrevistados, 63% mantiveram a trajetória institucional, (04) reincidiram na prática de atos infracionais ou (23) ingressaram no sistema prisional; e 11% foram vítimas de mortes violentas. (LABETA-IACK, SIQUEIRA, Et. Al., 2017).

Os jovens assassinados passaram pelo sistema socioeducativo e alguns deles estavam trabalhando, o que demonstra uma tentativa de interromper a trajetória e não retornar ao sistema. No entanto, a decisão individual não foi suficiente para preservar a vida! (LABETA-IACK, BARBOSA, 2018).

Para 74% dos adolescentes e jovens egressos do sistema socioeducativo o sistema de garantia de direitos não foi eficiente em sua proteção, e quando isso acontece acabamos por produzir a manutenção da trajetória institucional. O Relatório Nº 20 do IPEA (2015) aponta que o fenômeno contemporâneo do ato infracional juvenil não está associado à pobreza, mas, sobretudo, à desigualdade social e à dificuldade no acesso às políticas sociais de proteção implementadas pelo Estado.

A segregação dos adolescentes no sistema socioeducativo, o encarceramento da juventude nas prisões brasileiras e a letalidade – ou seja, a morte violenta por arma de fogo – têm sido dirigidas a uma população específica: pretos, pobres, moradores de periferia, sem acesso às políticas públicas e aos direitos sociais. (LABETA-IACK, 2019).

É possível negar o recorte étnico-racial e de classe dessas ações? O crescimento da segregação e do encarceramento têm resultado em diminuição da violência? A construção de espaços de privação de liberdade resolverá o problema? Se reduzimos o investimento em educação e aumentamos o gasto com a segurança pública é sinal que algo não vai bem. É preciso pensar que sociedade queremos!

A defesa intransigente dos direitos humanos deve ser objetivo superior dos operadores do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. É preciso dar voz aos sujeitos, pois esta ação se constitui um instrumento fundamental.

É preciso retomar o fôlego e continuar a luta pelo direito à vida e pela efetivação dos direitos de todas as crianças e adolescentes! Para tanto, os conselhos de direitos têm um papel fundamental no controle social da política de socioeducação. A efetivação do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo deve ser objeto de monitoramento das instituições que integram o sistema de garantia de direitos.

Se mudarmos, hoje, nossa ação, o futuro de nossas crianças e adolescentes poderá ser diferente.

 

[1] Advertência, Obrigação de Reparar o Dano, Prestação de Serviço a Comunidade (PSC), Liberdade Assistida (LA), Semiliberdade e Internação.

 

* Assistente Social, Servidora Pública efetiva no Iases, Especialista em Gestão de Políticas Sociais para Infância e Juventude (UNIREDENTOR), em Educação em Direitos Humanos (UFES) e em Política Pública e Socioeducação (UNB). Pesquisadora na área de Infância, Juventude, Violência e Políticas Públicas. Mestranda em Política Social (UFES).

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