Quando se fala de população em situação de rua, o pouco que se vê nos meios de comunicação, na grande maioria das vezes, refere-se a violação de direitos, desrespeito, fome, doenças, que são as situações por que mais passa esse segmento da população. Esta, por sua vez, compõe uma grande parcela de usuários/as atendidos/as por assistentes sociais em todo o Brasil.
Assim, em continuidade à serie de entrevistas com profissionais do Serviço Social para debater sobre a atuação durante a pandemia do Covid-19 (coronavírus), o CFESS conversou com Ana Paula Cardoso da Silva, que é assistente social da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (SMASDH/RJ) e do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE), do Ministério da Saúde. Confira abaixo!
CFESS – No último levantamento nacional sobre pessoas em situação de/na rua, foram detectadas mais de 146 mil pessoas. Quais são os impactos do novo coronavírus (Covid-19) para esta população?
Ana Paula – As chamadas “pessoas em situação de rua” se referem a um grupo bastante heterogêneo e complexo, que expressa uma faceta da questão social multifatorial (desemprego, conflitos familiares, violência doméstica e/ou na comunidade, uso abusivo de substâncias psicoativas, entre outros).
O novo coronavírus (Covid-19) atinge bruscamente, sobretudo, esta população, que sobrevive em precaríssimas condições de existência, contando bastante com o Poder Público, estando na linha de frente da atuação, por meio do Sistema Único de Assistência Social (Suas), com os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) e os Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop); o Sistema Único de Saúde (SUS), com os Consultórios nas Ruas e as ações caritativas de grupos religiosos e organizações não governamentais (ONGs) em seu cotidiano.
As pessoas em situação de rua estão inseridas, em sua maioria, no mercado informal de trabalho, como catadores/as de recicláveis, vendedores/as ambulantes, etc. No entanto, com o isolamento social (extremamente necessário e vital) recomendado pelos órgãos sanitários, aqueles que têm como sua “casa” a rua ficam à deriva neste período, com relatos alarmantes de fome, insegurança e incerteza ainda mais fortes. Merece destaque aqui a economia invisível movida pela população em situação de rua (com destaque para a reciclagem) para o capital, a qual tem a rua como fonte de recursos e de sobrevivência. Interessante expor ainda a fala de um usuário em situação de rua, colhida em meu exercício profissional: “os ricos existem por causa de pobres como eu, ficam cada vez mais ricos”.
Enfim, apesar dos aparelhos midiáticos tentarem repassar um ideário de que “estamos todos/as no mesmo barco”, certamente não estamos, haja vista a realidade destas pessoas. Se a “vacina” atual é o isolamento social, o chamamento ao “fica em casa”, imaginem como está ainda mais desprotegida a população em situação de rua nesta conjuntura.
CFESS – O Suas prevê o atendimento a essa população, porém a maioria permanece sendo executada pela iniciativa privada, principalmente, por instituições religiosas. Com a decretação do distanciamento social, como tem sido o atendimento e a vida dessa população?
Ana Paula – O Suas tem papel de destaque na atuação com a população em situação de rua. É de suma relevância também o conhecimento e a divulgação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto nº 7.053/2009, para a sociedade no geral.
De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009), dentre os Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade, tem-se o Serviço Especializado em Abordagem Social e o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua para o atendimento a este público, sendo o primeiro executado pelos Creas, e os segundos pelos Centros Pop.
Avalio que redes de solidariedade são sempre bem-vindas, ainda mais em contextos de crise. Contudo, é imprescindível ressaltar uma das diretrizes da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas): “primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo”.
Com a decretação do distanciamento social, os Creas e os Centros Pop no município do Rio de Janeiro, onde atuo, estão funcionando de 10h às 14h, assim como os Cras, tendo o atendimento aumentado significativamente por estes/as usuários/as, seja solicitando: isenção para requerimento de segundas vias de documentação; inclusão ou atualização cadastral referente ao Programa Bolsa Família; requerimento ou informações sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC); benefícios eventuais (gêneros alimentícios e auxílio emergencial) ou acolhimento institucional.
Cabe pontuar que, apesar das novas ofertas de vagas para acolhimento institucional, estas ainda estão muito aquém das reais necessidades quantitativas e qualitativas destas pessoas, assim como quanto à distribuição de kits de higiene ofertados a elas.
A vida desta população, conforme já sinalizado acima, está ainda mais dura e sem perspectivas de melhoras, levando em consideração os relatos de fome, maiores dificuldades para realização de higiene pessoal e de carência de possibilidades de sustento nas ruas, escutados nos atendimentos sociais diários, sendo estas duas primeiras agravadas pelo fechamento de instituições religiosas, que auxiliam bastante na oferta de banho e alimentação para a mesma.
Ficar em casa e ter uma casa para cumprir a orientação crucial das autoridades e órgãos sanitários para diminuir a velocidade da propagação do vírus neste tempo de pandemia, de fato, são privilégios de classe, os quais pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência não possuem, ficando ainda mais expostas aos riscos das ruas neste período. Dessa forma, medidas de isolamento social e quarentena não podem ser desassociadas de medidas de proteção social, senão as classes menos favorecidas sofrerão muito mais os impactos desta pandemia, principalmente a população em situação de rua. Não podemos continuar naturalizando a tragédia social vivida.
CFESS – No dia 2 de abril de 2020, o governo federal sancionou o auxílio emergencial aprovado pelo Legislativo brasileiro. Contudo, a sua operacionalização vem dificultando o acesso, em especial da população em situação de/na rua, dentre outros. Como o/a assistente social pode contribuir para enfrentar essa situação?
Ana Paula – De fato, a operacionalização do auxílio emergencial vem enfrentando diversos entraves, sobretudo no que tange ao acesso da população em situação de rua, considerando que uma parcela significativa não possui documentos ou a documentação completa para tal, além de problemas acerca da regularização do CPF. Outro fato objetivo que vem impedindo o acesso da maioria destas pessoas é o de não possuírem um aparelho de telefone celular, visto que: ao preencher o link para realizar a inscrição, é necessário que o usuário informe seu número de celular para que possa receber o código de confirmação por SMS, o qual possibilitará a validação do seu cadastro. Situação esta que se agrava, porque o mesmo número de telefone não pode ser utilizado para a realização de outro cadastro. Se não fossem estes empecilhos, os Creas e os Centros Pop, desde que garantidos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e Equipamentos de Proteção Coletiva (EPC), necessários também para assegurarem a saúde de seus/suas trabalhadores/as, poderiam servir como porta de entrada destas inscrições para este público; contudo, seguem aguardando posicionamento do governo federal quanto a este impasse.
No intuito de atuarmos respaldados/as em um “posicionamento em favor da equidade e justiça social, uma estratégia viável para provocar e buscar o acesso das pessoas em situação de rua a este benefício é a de encaminhar um documento descrevendo os nomes e a situação atual dos/as usuários/as para ciência e providências cabíveis ao Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública, além de realizar articulações coletivas, tais como: com os Fóruns Permanentes sobre População Adulta em Situação de Rua; com os Fóruns de Trabalhadores do Suas e do SUS; com o Movimento Nacional da População de Rua, entre outras organizações e movimentos sociais afins.
O trabalho de assistentes sociais com pessoas em situação de rua deve sempre se pautar no respeito aos direitos humanos e no fortalecimento ou resgate dos vínculos familiares e comunitários, por meio da aproximação e vinculação empática com as mesmas, baseando-se em práticas de cuidado singular e acolhimento às diferenças, e uma abordagem interdisciplinar e intersetorial.
CFESS – O Ministério dos Direitos Humanos lançou nota técnica sobre o atendimento da população em situação de rua durante a pandemia. Nela, consta a indicação da construção do nominado Housing First ou Moradia primeiro. Essa estratégia prevê a contratação de alugueis ou construção de casas para a saída definitiva das ruas. Como você analisa a sua implantação no país?
Ana Paula – Atualmente, há iniciativas de Housing First ou Moradia Primeiro implementadas nos EUA, no Canadá, no Japão e em pelo menos 20 países da União Europeia, em diferentes níveis, sendo que nos EUA, Canadá e Austrália são políticas públicas. Refere-se a uma experiência utilizada no Brasil, em São Paulo, na época do governo Haddad. Todavia, logo após a sua posse, o prefeito João Doria anunciou a criação de um novo programa, intitulado de Redenção, e pelo Projeto RUAS (Ronda Urbana de Amigos Solidários), que se trata de uma associação de fins não econômicos que presta apoio e assistência a pessoas em situação de rua. A saber, o RUAS é a primeira organização a trazer tal metodologia para a América Latina.
Vale citar que, ao não exigir abstinência para a oferta de residência, o Programa De Braços Abertos, do município de São Paulo, utiliza-se deste modelo conhecido internacionalmente como “Housing First” (moradia primeiro), que entende a oferta de moradia permanente e estável como estratégia fundamental para a ressocialização dos/as cidadãos/ãs em situação de rua, indo de encontro à ideia de “Treatment First” (tratamento antes), comumente usado em nosso país.
A metodologia do Housing First prioriza o acesso imediato das pessoas em situação de rua a uma moradia individual, digna e segura, acompanhada por uma equipe de apoio flexível e multidisciplinar, almejando resultados efetivos de saída das ruas e redução de custos para a administração pública, fato este último de maior interesse e valia para o capital.
Há relatos de que esta experiência gera: maior estabilidade no abrigamento; diminuição do uso de drogas; possibilidades mais amplas de empregabilidade aos/às usuários/as assistidos/as e economia para os cofres públicos, em que se realiza uma triagem por perfil; o abrigamento em casa própria; o acompanhamento e a emancipação da pessoa em situação de rua atendida.
Em suma, avalio que: um “teto” sem recursos não se sustenta, desaba. Sendo assim, a eficiência, a efetividade e a eficácia desta estratégia estão vinculadas diretamente com a intersetorialidade das políticas públicas; a ênfase na política habitacional e na vontade/interesse político em aplicar recursos para o seu êxito, requisitos estes não muito familiarizados com a realidade política brasileira, assim como a sua trajetória de “enclausurar” inicialmente esta população, para depois possibilitá-la o acesso aos outros serviços da rede pública.
CFESS – Como você avalia o impacto desse contexto para o trabalho de assistentes sociais com a população de rua?
Ana Paula – Esta pandemia está servindo, dentre tantas coisas, para dar transparência, à sociedade em geral, das principais mazelas produzidas pelo sistema capitalista, precipuamente, num país capitalista dependente como o nosso, marcado por uma profunda e histórica desigualdade social, além de provar, a duros golpes, a seus/suas governantes, que as principais “armas” para vencer esta “guerra”, são aqueles que vem sendo tão atacados e desvalorizados pelo Poder Público na contemporaneidade brasileira: o SUS; a Ciência; a Educação (em especial, as Universidades Públicas); a Arte; a Cultura; o Suas.
Há que se destacar, ainda, o quanto devemos redobrar a nossa atenção e pensar coletivamente em estratégias de resistência, nesta conjuntura pautada pelo medo e incerteza, na qual se tem, de um lado, a contradição dos sentimentos de piedade X ódio que a população em situação de rua gera no senso comum e, do outro, as ações assistencialistas, ora policialescas e repressivas, de “limpeza urbana”, por parte dos aparatos estatais em determinados momentos, visto que sem tem um contexto propício para disseminar o ideário do acolhimento (leia-se recolhimento) compulsório, por causa do medo da contaminação e propagação do vírus por esta população. A nossa luta deve ser sempre pela universalização das políticas públicas e contribuir no exercício profissional em seus vários espaços de atuação para transformar este cenário pautado no medo, num campo fecundo para reflexão crítica e superação racional coletiva dos inúmeros problemas agudizados com esta pandemia.
Considerando todas as questões já abordadas no decorrer desta entrevista, o contexto atual é bastante desafiador para o trabalho profissional, em especial, com as pessoas em situação de rua, mas, como qualquer contexto histórico, permeado por enfrentamentos (leia-se resistência), contradições e possibilidades. Recomenda-se a capacitação continuada para a atuação profissional no período pós-pandemia, quando as facetas da questão social estarão ainda mais graves e complexas.
É fundamental, ainda, salientar a valorização da dimensão pedagógica do trabalho profissional, na qual o/a assistente social pode contribuir com o trabalho de educação em saúde com esta população, explicitando, por uma linguagem simples e acessível, acerca da pandemia e de medidas de prevenção contra o novo coronavírus, como também buscar propiciar um ambiente dialógico e crítico dentro dos seus espaços sócio-ocupacionais e com a sociedade civil no geral, com ênfase na visibilidade positiva destes/as usuários/as.
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