Um grande número de assistentes sociais integra a linha de frente no combate à pandemia do novo Coronavírus (Covid-19) no Brasil. Para fomentar o debate na categoria, o CFESS prossegue com a série de entrevistas com profissionais do Serviço Social em diferentes espaços ocupacionais.
Nesta semana, a vez é da área da Saúde. Por isso, o Conselho Federal conversou com as assistentes sociais Adla Cristina A. de Oliveira, Amanda Modesto de Oliveira, Ana Lúcia Pinto Tavares, Barbara Braz Moreira, Danielli da Silva Costa, Maria Erica Ribeiro Pereira, Pâmela Santos da Silva, Samantha de A. Nóbrega Soares e Vivianny Mary Jucá Bezerra. Elas trabalham no Instituto Dr. José Frota, hospital da rede de assistência à saúde da Prefeitura de Fortaleza (CE), integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Confira logo a seguir!
CFESS – Diante da pandemia do novo Coronavírus (Covid-19), como o serviço está organizado, considerando que a prestação dos serviços de saúde é essencial para a população nesse momento?
Equipe – Somos assistentes sociais trabalhadoras de uma unidade hospitalar pública, de atenção terciária, do SUS, referência em traumas de alta complexidade, lesões vasculares graves, queimaduras e intoxicações. O IJF, conhecido pelos/as cearenses como “Frotão”, se constitui num hospital caracterizado por um fluxo intenso de usuários/as, oriundos/as, inclusive, de todo o estado. Contudo, para adaptar-se ao contexto da pandemia, toda a rede de saúde pública, da capital e interior, passou por um reordenamento, no que tange à organização e estruturação dos serviços. Nessa direção, a nossa instituição, além de tratar das demandas de saúde descritas acima, passou a ser referência também no atendimento aos casos mais graves de pacientes acometidos/as pelo Covid-19.
Este cenário implicou na participação efetiva dos/as assistentes sociais nas reuniões de gestão e das equipes multiprofissionais, para a definição das estratégias e a construção dos diversos fluxos institucionais necessários ao enfrentamento dessa nova realidade. A construção de um documento que definisse as nossas atribuições e competências, diante da pandemia do Covid-19, se constituiu em uma estratégia de demarcar o nosso papel para as demais categorias da equipe multiprofissional e a nossa intervenção junto aos/às pacientes e familiares.
Nesse serviço, o/a assistente social compõe a equipe multiprofissional da referida unidade, sendo responsável por conhecer e transmitir a realidade socioeconômica e cultural dos/as pacientes/famílias, apontando suas vulnerabilidades sociais e econômicas; formular estratégias de intervenção, tendo como base a situação socioeconômica (habitacional, trabalhista e previdenciária) e composição familiar dos/as usuários/as, subsidiando a prática dos/as demais profissionais de saúde; trabalhar questões relativas à humanização na saúde, relações sociais, fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e orientações sociais à população atendida, quanto aos seus direitos sociais e de cidadania.
Desse modo, a fim de diminuir o fluxo e aglomeração de pessoas, as visitas aos/às pacientes foram suspensas e a presença dos/as acompanhantes tornou-se mais restrita, priorizando-se a permanência para os casos previstos em lei (pacientes idosos/as, crianças, adolescentes, pessoas com deficiência) e aqueles com justificativa clínica ou solicitação médica. Nas unidades fechadas, como Unidade de Terapia Intensiva (UTI), salas de recuperação do pós-operatório e na unidade de referência para o atendimento dos casos de Covid-19, não há acompanhantes ou visitantes.
Com a intervenção e articulação do Serviço Social, estabelecemos um serviço de teleatendimento, voltado para o acesso das famílias às informações dos/as pacientes. Por meio do contato via ligação telefônica, o/a profissional médico/a repassa o quadro clínico e a condição de saúde dos/as pacientes aos/às familiares. Ao/À assistente social compete identificar a pessoa de referência na unidade familiar, com o intuito do repasse das informações clínicas diárias pela equipe médica, bem como sensibilização da família para que eleja um membro, a fim de torná-lo referência para tal finalidade; Orientar os/as familiares sobre a rotina hospitalar e a dinâmica da unidade Covid-19, bem como a importância do isolamento social de familiares e/ou contactantes; Atualizar diariamente os contatos telefônicos e referências familiares para disponibilizar às equipes.
Este serviço tem exigido uma prática ampliada e humanizada em saúde, pois o contato via telefone deve possibilitar o acesso à informação de qualidade e contribuir para amenizar o sofrimento das famílias. Por isso, defendemos que o repasse das informações clínicas seja realizado pelo/a profissional médico/a, em respeito aos/às usuários/as e às especialidades de cada categoria que integra a equipe multiprofissional.
CFESS – Quais as dificuldades identificadas para o trabalho de assistentes sociais, no que se refere às condições éticas e técnicas estabelecidas pela Resolução CFESS nº 493/2006?
Equipe – Estamos em um contexto de trabalho único e desafiador, o qual nos demanda ações ousadas e ressignificadas diante da pandemia do Covid-19. Essa problemática nos remete às determinações do Conjunto CFESS-CRESS, o arcabouço jurídico da profissão, especialmente, a Resolução CFESS nº 493/2006. Citamos, primeiramente, a nota do CFESS publicada em março deste ano, referente às “orientações sobre o exercício profissional diante da pandemia do coronavírus”, pois esclarece que a nossa atuação deve seguir rigorosamente as indicações e protocolos dos órgãos sanitários de saúde pública, além de observar as orientações no âmbito dos órgãos empregadores. Instrui, ainda, que a forma de atendimento mais adequada, nesse contexto, deve ser priorizada e realizada pelo/a próprio/a profissional, levando em consideração sua autonomia, ou melhor, sua “relativa autonomia”, baseada na coletividade e no diálogo com seu empregador, seguindo as orientações sanitárias e de classe profissional, na tentativa de responder às demandas solicitadas com a segurança necessária para a proteção do/a trabalhador/a e dos/as usuários/as.
Remetendo-se especificamente à Resolução CFESS nº 493/2006, que dispõe sobre as condições éticas e técnicas do exercício profissional do/a assistente social, em nossa instituição vivenciamos a dificuldade de garantir um local de atendimento presencial adequado ao/à usuário/a e ao/à assistente social, o que tem comprometido o nosso direito ao sigilo profissional. Recentemente conquistamos a ampliação significativa do número de assistentes sociais, por meio de concurso público para cargo efetivo. De janeiro de 2018 a março de 2020, foram convocadas mais de 50 profissionais. Uma luta histórica e travada em articulação com as nossas entidades representativas, o que nos leva a compreender a importância dos Conselhos Regionais e Federal fortes e atentos às demandas da profissão. Contudo, o aumento do quantitativo de profissionais não acompanhou a aquisição da infraestrutura adequada para a acomodação da equipe, atendimentos e desenvolvimento dos trabalhos.
Esses desafios são profundamente agravados diante da Pandemia do Covid-19, em que os fluxos institucionais são criados e reordenados segundo o avanço da doença, em uma readaptação constante. Outra dificuldade visualizada é que, além da garantia do local de atendimento adequado e seguro para o/a trabalhador/a e usuário/a, existe a necessidade de o empregador garantir, para os/as profissionais de saúde de uma forma geral, os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) necessários para o desenvolvimento do trabalho. É preciso garantir, aos/às assistentes sociais atuantes em instituição pública ou privada, os EPIs, treinamento sobre o uso destes e os meios de prevenção e proteção do Covid-19. Lidar com a escassez de máscaras cirúrgicas e de outros equipamentos de proteção tem feito os/as assistentes sociais custearem seus EPIs, apesar de a nossa intervenção requerer a ação do Estado na garantia da proteção ao/à trabalhador/a que, neste momento, está atuando no combate ao Covid-19, conforme determinam as organizações sanitárias.
Esse momento exige o levantamento dessas questões e reflexões coletivas, no intuito de garantir melhores condições de trabalho. Cabe mencionar as estratégias excepcionalmente adotadas, como as teleconferências e o trabalho remoto, para garantir a segurança do/a trabalhador/a e a continuidade do atendimento ao/à usuário/a, conforme orientações de segurança da OMS e do Ministério da Saúde.
CFESS – Quais as demandas mais prevalentes apresentadas pelos/as usuários/as ou familiares para o Serviço Social, relacionadas ao novo coronavírus?
Equipe – Diante da linha de cuidado construída durante a pandemia do Covid-19, o IJF ocupa lugar de referência a pacientes graves, que necessitam de cuidados intensivos em leitos de UTIs. Os/As usuários/as, em sua maioria, estão intubados/as e inconscientes, são regulados/as dos serviços de atenção secundária, geralmente das Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e outros hospitais. Desse modo, nosso cotidiano profissional é voltado para o atendimento às famílias e estas, por sua vez, têm como principal demanda o questionamento sobre o quadro clínico do/a paciente.
No início da pandemia em Fortaleza (CE), em março de 2020, contabilizamos os casos de Covid-19, oriundos majoritariamente das áreas nobres, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais elevado. No entanto, tivemos uma rápida mudança no perfil geográfico dos bairros dos/as pacientes. Se, há duas semanas, não havia nenhum/a paciente oriundo/a da periferia, hoje grande parte dos leitos são ocupados por pessoas que vivem em bairros da periferia da cidade, algumas em situação de rua. A velocidade do espraiamento do coronavírus nas regiões periféricas da capital foi intensa. Dessa maneira, o perfil das famílias muda, seja em seus hábitos culturais, crenças.
Nesse momento, trabalhamos com educação em saúde e sensibilização, explicando os riscos envolvidos, uma vez que são pessoas contactantes, além de orientar o fluxo e rotina da unidade UTI-Covid-19, em que informações clínicas serão passadas por médicos e a família terá atendimento multidisciplinar de forma remota, ou seja, por telefone. Na admissão, ao preenchermos o Prontuário Social, identificamos possíveis encaminhamentos e orientações para acesso a benefícios ou direitos trabalhistas e/ou previdenciários.
Nesse sentido, outro grande desafio dos/as profissionais que lidam diretamente com o Covid-19 é a alta letalidade, o que acontece de forma rápida. Em determinado momento, realizamos admissão de um/a paciente pela manhã e, no período da tarde, a pessoa foi a óbito. Pela manhã, explicamos às famílias sobre a rotina do hospital e, à noite, concedemos o Auxílio-Funeral. Vale destacar a crueldade inerente ao novo rito, uma vez que não é possível a despedida do seu familiar, e o número de pessoas permitidas no cemitério é extremamente restrito, por motivos sanitários. Esse cenário abala profundamente os/as profissionais em termos psíquicos. O que também suscita a importância de pensarmos em estratégias voltadas para a saúde mental e o nosso autocuidado enquanto trabalhadores/as da saúde.
Além desse contexto mais relacionado ao acesso à previdência e à política de assistência, temos algumas dificuldades apresentadas a partir da falta de documentações, ao acesso à conta bancária do/a paciente internado/a, bem como a própria organização familiar e estrutural para receber o/a paciente após a alta. Por isso, durante a internação, entramos em contato com os/as familiares de forma sistemática, para que possamos realizar as orientações necessárias e compreendermos melhor as relações sociais e familiares relacionadas ao/à paciente e, diante disso, traçamos estratégias de cuidado à saúde, a partir de um olhar para os determinantes e condicionantes da saúde.
Além desse contato com a família, realizarmos os devidos diálogos com a rede socioassistencial, a qual também sofre uma reestruturação de atendimento diante da pandemia, o que nos obriga a reinventar essa relação interinstitucional para o cuidado e defesa do direito dos/as usuários/as que atendemos.
Mesmo com o nosso esforço, a barbárie está anunciada com a chegada do Covid-19 nas periferias, o ineditismo e o imediatismo nos acompanharão lado a lado no nosso fazer profissional, uma vez que não temos ainda noção da real dimensão das consequências dessa pandemia para a classe trabalhadora. Por sorte, há muito, o Serviço Social lida com as refrações mais cruéis inerentes ao sistema de produção capitalista. Embora não saibamos o que está por vir, conhecemos os elementos centrais de uma crise estrutural.
CFESS – Como vocês avaliam o impacto desse contexto para o trabalho dos/as assistentes sociais na saúde?
Equipe – O cenário de pandemia do Covid-19 é repleto de desafios para a categoria dos/as assistentes sociais, pois exige reflexões sobre o fazer profissional na saúde e requer que a forma como estamos realizando nosso trabalho seja repensada e recriada, a partir desse novo contexto, mas sempre observando as atribuições privativas e competências profissionais.
O contexto da pandemia, além das reestruturações e das adaptações apresentadas até o momento, também nos conduz a uma reafirmação do trabalho do Serviço Social na saúde, pois exige que os/as profissionais, ao desenharem as novas formas de trabalho, resgatem as leituras acerca dos aspectos teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativo do Serviço Social. É importante que o Serviço Social se reafirme nas instituições e órgãos da saúde, deixando quais são as suas atribuições privativas e competências profissionais, para que não sejam requeridas de nós, assistentes sociais, práticas e funções que não são nossas. No âmbito da saúde, o/a profissional do Serviço Social precisa compreender as questões – econômicas, políticas, sociais, trabalhistas, previdenciárias, culturais, etc. – que interferem no processo saúde-doença dos sujeitos, para assim atender às demandas identificadas, por meio da articulação e interlocução com as diversas redes socioassistenciais.
Obtivemos, no início da implementação das ações sanitárias de controle da pandemia no âmbito institucional, a seguinte deliberação: os/as acompanhantes com sintomas gripais deveriam ser encaminhados/as ao Serviço Social, para ser garantida a substituição por outro/a familiar. Este fato despertou o questionamento do nosso papel junto a este/a usuário/a acompanhante, que, ao apresentar sintomas da síndrome gripal, não poderia mais permanecer na instituição. Quem o/a identificaria? Quem devidamente o/a abordaria? Quem faria a escuta para proporcionar a diferenciação dos sinais clínicos? Ficou clara a necessidade de envolver a enfermagem nesse fluxo, para as devidas orientações técnicas em relação aos sintomas do Covid-19. Assim estabelecemos o desenvolvimento de ações conjuntas de educação em saúde nas unidades de internação e conseguimos delimitar o nosso papel na sensibilização da família, para que encaminhasse outro membro, e no reforço das orientações sanitárias no viés multidisciplinar.
Essa complexidade exige de nós o reforço ao trabalho multiprofissional, o apoio mútuo entre as profissões, demarcado o que pertence de fato ao trabalho do/a assistente social, o qual deve ser atualizado conforme as imposições da realidade, mas sem perder de vista o nosso horizonte de atuação e nossa base constitutiva. Assim, é preciso ter visão do todo, para não cairmos no imediatismo das ações e em condutas incompatíveis com a profissão, as quais tendem a emergir como soluções rápidas e veículo de garantia de direito dos/as usuários/as.
Além disso, outro desafio posto é: como efetivar os encaminhamentos para uma rede de proteção social que está funcionando parcialmente? Percebemos entraves quanto ao respeito e à garantia dos direitos sociais dos/as usuários/as, especialmente quando buscam as redes de apoio, socioassistenciais e de proteção, pois a maioria das atividades e serviços prestados estão suspensos ou interrompidos, agravando de forma significativa as condições de vida de grupos em vulnerabilidade social e impactando diretamente no trabalho do/a assistente social.
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