O assistente social, doutor em Saúde Coletiva e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS / UFRJ), Guilherme Silva de Almeida concedeu, uma entrevista exclusiva para o Conselho Regional de Serviço Social do Espírito Santo (CRESS-ES) sobre os direitos de mulheres e homens transexuais e travestis.
Toda entrevista foi realizada com ajuda das redes sociais, com o objetivo de recordar a importância de se celebrar o Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, comemorado no dia 29 de janeiro.
Almeida é pesquisador das diversidades de gênero e sexualidade, e o primeiro doutor trans do país. Confira a entrevista!
CRESS – Qual a sua relação com a luta dos/das transexuais e travestis?
Guilherme Silva de Almeida – Eu me inseri nas lutas e discussões do movimento LGBT ainda na década de 1990. Atuei como voluntário na implementação do DDH, que foi a primeira política do país voltada a este público, em 1999. Há 19 anos meus interesses de pesquisador se dirigiram principalmente ao campo da diversidade sexual e de gênero. Trabalhei com temas como movimento LGBT, saúde sexual, HIV/Aids, direitos sexuais, homossexualidade, transexualidade, relações de trabalho e discriminação, entre outros. Além de pesquisas, atuei na implementação de outras iniciativas públicas voltadas ao público LGBT, como os Centros de Cidadania LGBT e o processo transexualizador no SUS. Tenho contribuído também para a capilarizacao desses temas na formação profissional de assistentes sociais e de outras profissões.
CRESS – Qual a importância de se ter uma data de celebração às pessoas trans e travestis?
S. A. – Há cerca de 13 anos, quando apresentei publicamente minha identidade como homem trans, a visibilidade da transexualidade no Brasil era muito menor. Naquele contexto, a data era, sobretudo, uma forma das/dos militantes inserirem o tema na esfera pública, conferindo a ele inteligibilidade. Esse trabalho foi fundamental para alavancar a defesa de direitos, como o reconhecimento jurídico-legal da identidade pleiteada pelo próprio sujeito, o direito a modificações corporais no SUS, o direito a integridade física e mental, o direito à educação e ao trabalho, entre outros. Ainda que de forma controversa e insuficiente, tivemos um alargamento dos direitos da população trans no Brasil, nos últimos dez anos. O cenário ultraconservador, agravado a partir de 2019, faz com que esta e outras datas sejam fundamentais para a conservação e o alargamento desses direitos. Fenômenos como as cruzadas antigênero, operadas inicialmente por grupos religiosos conservadores e, posteriormente, por um conjunto heterogêneo de instituições e sujeitos reacionários, afetam drasticamente as condições de vida tanto das pessoas trans, que já vivem como tais, quanto de um insondável número de crianças e adolescentes, principalmente, que são vitimados por não atenderem às concepções hegemônicas de feminilidade / masculinidade.
CRESS – O que significa essa visibilidade?
S. A. – As pessoas trans não eram invisíveis, eram invisibizadas por uma ordem social restrita a versões caricatas do ser mulher ou homem, do feminino e do masculino. Além disso, é uma ordem social que insiste em justificar na biologia o que tem pouco a ver com ela. Tem muito mais a ver com as expectativas ancoradas em relações sociais simultaneamente capitalistas, sexistas, racistas, homofóbicas, transfobicas. Essa ordem, ainda hoje, invisibiliza e subalterniza os sujeitos cujas características fujam ao esperado. A expressão mais objetiva da invisibilização das pessoas trans é o seu extermínio / assassinato. Mas também ocorre invisibilização nas diferentes formas de violência, na interdição de direitos, na frequente pobreza, no desemprego / subemprego dessas pessoas e, principalmente, na negação de sua importância social e de seus feitos e realizações.
CRESS – Qual a importância de ser visibilizado? E que tipo de olhar é positivo ou negativo?
S. A. – Ser visibilizado é uma condição para a sobrevivência tão importante quanto às condições materiais de vida, justamente porque está intimamente vinculada a materialidade. Quem é invisível não tem direito a nada. Se a cisgeneridade é a única forma de vida concebida pelas políticas sociais, não há acesso de pessoas trans a um programa de transferência de renda, por exemplo. No entanto, não é qualquer visibilidade que se busca. Qual o significado de ser uma pessoa trans hipervisível nas mídias sociais, se essa visibilidade convida apenas a curiosidade sobre o conteúdo pitoresco de nossas vidas, para vender novos produtos culturais no mercado ou, ainda, mantendo-se inalteradas as características sociais que produzem sofrimento, como o sexismo?
CRESS – Na luta pelas pessoas trans e travestis, qual o papel da/do assistente social?
S. A. – O trabalho profissional por si só não é o espaço em que as diferentes expressões de desigualdade social serão vencidas, mas é uma arena importante onde os posicionamentos assumidos por um/a profissional fazem muita diferença nas vidas de seus/suas usuários/as. Estou convencido de que eles podem, inclusive, fazer diferença entre o viver e o morrer. Não existe um papel definido esquematicamente para o/a assistente social na relação com pessoas trans. Contudo, as entidades da categoria têm produzido subsídios para qualificar essa atuação, como o documento contendo orientações para os/as profissionais feito pelo CFESS, disponível na página eletrônica da entidade.
Acesse a reportagem sobre o assunto
Série Assistente Social no combate ao preconceito
CRESS – Como o Serviço Social pode contribuir com as pessoas trans e travestis? Tanto no acesso a políticas públicas quanto na prestação de serviços.
S. A. – Considero que uma das maiores contribuições do/a Assistente Social pode se dar no processo transexualizador ou, dito de outra forma, durante os períodos mais significativos para a afirmação da identidade de gênero pelas pessoas trans. No meu entendimento, a “transição de gênero” só pode ser compreendida em sua complexidade social, o que implica no enfrentamento de sua dimensão subjetiva, biológica, jurídica, comunitária, econômica, familiar, entre outras. Em todas essas dimensões, a reflexão / atuação crítica do/a assistente social pode ser fundamental.
CRESS – Na atual conjuntura, quais os desafios da população trans / travesti?
S. A. – O maior desafio das pessoas trans é inegavelmente permanecerem vivas, sobretudo se também são trabalhadores/as pobres e/ou afetadas pelo racismo. Isso consome grande parte das energias das pessoas trans brasileiras e é pré requisito para que possam acessar direitos. Pode parecer estranho, mas muitas das pessoas trans que conheci, até hoje, morreram sem terem suas identidades totalmente reconhecidas – algumas foram sepultadas com um nome que repudiavam – sem condições mínimas de sobrevivência, sem serem aceitas por suas famílias, sem conquistarem o direito de trabalharem naquilo que acumularam qualificação pra fazer, sem o direito de se reproduzirem, etc. Um desafio nesta direção é sair do isolamento e integrarem redes fortes de relacionamento social e agência política. Além disso, é fundamental que não perca muito de vista a relação das questões trans com todas as outras formas de desigualdade social existentes e a necessidade de agendas políticas comuns. Num contexto de retração das políticas públicas significa também que o controle social precisa ser redobrado.
Foto: Alice Coêlho
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