Na conjuntura nacional, uma das palavras mais pronunciadas por todos/as que defendem os direitos humanos foi “retrocesso”. Para o Serviço Social, isso não poderia ser diferente! Compreendemos que a construção dos direitos humanos se estabelece no processo sócio-histórico, de disputas e de extrema correlação de força e – por possuir código de Ética que reafirma nosso compromisso ético político com a defesa intransigente dos direitos humanos, contra todo tipo de arbítrio e autoritarismo,bem como a ampliação e consolidação da cidadania e radicalização da democracia presente no Código de Ética da profissão – afirmamos que a política de direitos humanos ou não-direitos humanos do atual governo não coaduna com o exercício profissional das/os assistentes sociais.
Em um cenário político permeado por conservadores e fundamentalistas, que ameaçam diariamente a garantia dos direitos da população, o conservadorismo, fundamentalismo e constantes retrocessos ganham espaço nas diversas esferas da vida social, por meio de discursos racistas, machistas, misóginos e LGBTIfóbicos, disseminados por quem governa nosso país, onde a política de não-direitos humanos tem imperado.
Temos acompanhado a retirada dos direitos, constitucionalmente adquiridos, por meio de manobras no Congresso e de assinatura de protocolos internacionais com os países que mais negam os direitos humanos, inclusive os diretos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras. Esses direitos perpassam pela autonomia sobre seus corpos; direito de acesso a serviços integrais de saúde, incluindo o aborto legal; livre expressão de sua orientação sexual e identidade de gênero (vide Resolução CFESS n.º 489/06); respeito em decidir ou não ter filhos, quantos e em que momento; ter acesso a métodos contraceptivos e, para aquelas que decidem tornarem-se mães, que possam ter um parto seguro, sem exposição à violência obstétrica.
Defendemos que o combate à cultura do estupro seja travado, também, no campo da educação com a incorporação do debate de gênero no Currículo Escolar. Temos enquanto profissão uma tarefa árdua de enfrentar o conservadorismo que atravessa o cotidiano profissional ao responsabilizar famílias e, especialmente, as mulheres, no que tange à proteção e reprodução social. Uma estratégia do sistema capitalista de individualizar a questão social em detrimento da garantia e primazia do Estado em prover direitos constitucionais.
Defender os direitos humanos é defender a igualdade, a diversidade, a dignidade, o respeito e a vida, reafirmando, também, o direito à informação frente ao negacionismo e ao obscurantismo reproduzido nos tempos atuais.
Nos últimos anos, especialmente em 2019, explodiram manifestações de mulheres contra o machismo e o patriarcado. A mais destacada delas se iniciou no Chile e se propagou pelo mundo com a performance do coletivo feminista LasTesis, intitulada “um estuprador em seu caminho”. Um dos trechos da impactante canção diz: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”. Esta histórica atuação do movimento feminista evidenciou um conceito chamado “cultura do estupro”. Em 2016, o então deputado federal e futuro presidente do Brasil atacou uma deputada federal, dizendo que só não a estupraria porque ela não merecia. Essa postura antiética, desrespeitosa e misógina expressa a forma como nosso país é governado.
Essas manifestações misóginas, como as citadas acima, já são anteriores a esta sociedade, mas foram utilizadas e “modernizadas” por esta formação social para reafirmar seu padrão de dominação dividindo homens e mulheres por meio de um conjunto de opressões, entre elas o machismo, mas também o racismo, a LGBTIfobia, o capacitismo, a opressão geracional, e etc. Ao arrastar consigo o entulho da antiga sociedade, o capitalismo recicla o machismo e o transforma em instrumento de dominação, reduzindo as/os trabalhadoras/es em geral e, sobretudo, as mulheres a condição de mercadorias; em teoria, coisificando, tornando-as coisas, objetos.
E onde está, no dia a dia, a chamada cultura do estupro? Resumidamente, esta “cultura” pode ser considerada o ápice da construção histórica da dominação machista que fabrica uma cultura de coisificação das mulheres, naturalizando o machismo e justificando o patriarcado, que devemos combater todos os dias em nossa atuação profissional. Esta cultura começa a fazer suas vítimas desde a infância. De acordo com IPEA, em 2011, 70% das vítimas de estupro foram crianças e adolescentes. Em 2013, 58% concordavam que se as “mulheres soubessem se comportar haveriam menos estupros” e 26% concordaram que “as mulheres que usam roupas curtas merecem ser estupradas”. Daí a pertinência da canção chilena citada acima: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”. Portanto, não podemos separar abuso e exploração sexual do estupro, da cultura do estupro, do machismo, do patriarcado e do capitalismo.
O avanço do conservadorismo amplia as situações de risco de morte e traz sérias consequências para a vida dos sujeitos de direitos, principalmente às mulheres – e mulheres negras. Colocando, para a sociedade, a responsabilidade de debater sobre a garantia dos direitos humanos, com destaque aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como a descriminalização do aborto.
Os/as assistentes sociais possuem relevância no atendimento à população em situações de risco, pela sua capacidade técnica e ética, de uma escuta qualificada e de orientações sobre o acesso aos direito sociais. Deste modo, temos o dever ético de garantir a plena informação; respeitar as decisões dos/as usuários/as, mesmo que sejam contrárias aos valores e crenças individuais dos/as profissionais; baseando o nosso exercício profissional nos pressupostos presentes no Código de Ética Profissional dos/as assistentes sociais.
Nesse contexto, torna-se necessário e urgente aprofundar o debate ético sobre os temas de estado laico, liberdade de consciência, liberdade religiosa e fundamentalismo religioso, pautando à incompatibilidade de se recorrer à expressão de religiosidade no exercício profissional.
Defendemos um Estado laico e democrático, que garanta os direitos humanos previstos em lei, fruto de muita luta social. Precisamos coletivamente qualificar e ampliar a apropriação da categoria acerca da função social da profissão e dos limites éticos de atuação nos espaços sócio-ocupacionais, reafirmando a trajetória do Serviço Social brasileiro e seu potencial social de transformação da realidade, a partir do acúmulo coletivo e histórico de defesa da classe trabalhadora, expressos nas nossas Bandeiras de Lutas e no nosso projeto ético político, que retratam a direção ético-politica da profissão.
Entendemos que há muito ainda a ser feito para que os Direitos Humanos se efetivem e sejam garantidos, conforme previsto em lei, principalmente nesse atual governo antidemocrático, misógino e racista. Entretanto, entre as muitas pedras no caminho e os inúmeros retrocessos, sabemos que há, também, muita luta social em curso para enfrentar essa realidade, e que estamos atentas e fortes contra qualquer retrocesso. Nenhum direito a menos!
Leia mais em:
Série Assistente Social no combate ao preconceito: machismo
Site Catarinas – Reportagem Especial: Atendimento por WhatApp mudou perfil de vítimas
Revista RADIS – NÃO é NÃO: Episódios recentes de violência evidenciam a cultura do estupro no país
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