O Serviço Social é uma das categorias que segue firme na linha de frente do combate à pandemia do novo Coronavírus (Covid-19). Em diferentes espaços, assistentes sociais seguem atuando de forma critica e qualificada, como na saúde, na assistência social, na previdência social, dentre tantos outros. No site do CFESS, por meio da seção Covid-19, você acessa todos os conteúdos e orientações produzidas pelo Conselho Federal para a categoria (clique aqui e conheça).
Por isso, o CFESS dá início hoje a uma série de entrevistas com assistentes sociais que atuam em segmentos diversos, para fomentar o debate sobre o enfrentamento à pandemia, o papel da categoria na atual conjuntura e as legislações que vêm sendo aprovadas pelo governo federal e pelo Poder Legislativo. Além disso, o Conselho vem construindo estratégias coletivas na defesa do exercício profissional de assistentes sociais em todo o país.
Quem conversou com o Conselho Federal, para iniciar os debates, foi a assistente social Reijiane Cristine Pinheiro da Silva, que trabalha no Centro de Recuperação Penitenciária do Pará III – complexo penitenciário de Americano, da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap/PA). Confira abaixo!
CFESS – Em meio à pandemia do novo Coronavírus (Covid-19), os ministros da Justiça e da Saúde publicaram a Portaria Interministerial n° 7/2020, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento à emergência de saúde no Sistema Prisional. Essas medidas estão sendo materializadas?
Reijiane – A Portaria dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública e cita que a administração prisional tem que identificar os/as custodiados/as com sinais e sintomas de gripe e que a equipe de saúde da unidade prisional deve averiguar e identificar os casos suspeitos. É importante ressaltar que, no Brasil, há um número de servidores/as que não dão conta de atender às demandas da população carcerária, que cresce numa proporção desigual, se comparamos com o número de servidores/as da administração prisional. Quando nos referimos aos/às trabalhadores/as e servidores/as da saúde, teremos uma visão da desproporcionalidade absurda. Por exemplo, aqui no Pará, as unidades prisionais sofrem com a ausência de médicos/as e enfermeiros/as. A lei que regulamenta a administração prisional indica que o máximo de assistentes sociais na administração são 100, para uma população carcerária de aproximadamente 14.000 homens e mulheres privados/as de liberdade. Como, então, os/as profissionais de saúde responderão aos determinantes da Portaria Interministerial n° 7/2020?
A mesma Portaria cita o isolamento como uma necessidade no combate à proliferação do Covid-19 no ambiente carcerário, porém a pergunta que fazemos é: como isolar em um espaço amontoado de pessoas? Que espaços ventilados e com higienização as unidades prisionais brasileiras possuem, para atender de forma humana àqueles/as que estão privados/as de liberdade, e em tratamento de Covid-19? A resposta é não. O governo que hostiliza os direitos humanos, realmente, não irá realizar esforços para salvar vidas de homens e mulheres que descumpriram as leis da sociedade.
CFESS – Quais são as condições e insumos necessários para o enfrentamento dessa crise, principalmente, depois da proibição parcial ou total da visitação no sistema prisional no país?
Reijiane – As condições são bastante difíceis. Em todos os estados, as visitas foram canceladas, o que gera, no interior das prisões uma diversidade de sentimentos. Aqueles/as que já sofrem com o isolamento, pela privação de liberdade, sentem o distanciamento de seus familiares, sem saber o dia que voltarão a vê-los/as. Os atendimentos da equipe técnica (assistentes sociais e psicólogos/as) são mais exigidos, pois precisam de notícias de familiares. As informações que chegam, nas unidades prisionais, é que muitas pessoas estão doentes, e outras foram a óbito, uma situação de guerra. As dificuldades de não ter uma comunicação eficaz (telefone, celular) prejudica ainda mais o nosso trabalho. Outra dificuldade são os baixos salários, a desvalorização profissional e a falta de condições adequadas de trabalho.
Aqui no estado, apresentaram o projeto Carta Virtual, para amenizar o distanciamento entre as pessoas privadas de liberdade e seus familiares. As famílias encaminham as cartas, por e-mail, e a equipe técnica, no atendimento, repassa e dialoga com o/a custodiado/a. Diante de todas essas dificuldades, percebemos que o afeto rompe os muros da prisão e consegue chegar ao seu endereço.
Quanto aos insumos, há também dificuldades, que não surgiram com a pandemia, e diria que tais situações se acirraram, pois a ausência de telefone, transporte para locomoção e equipamentos de proteção já faziam parte de nosso cotidiano profissional, agora mais ainda. O estado não nos dá condições de trabalho e os EPIs são escassos. Nós temos medos diários, hoje, não com aqueles/as que estão presos/as, e sim com o que não podemos ver, que é o vírus, e os governos precisam nos garantir proteção, com os EPIs, pois hoje nós somos os grandes riscos de contaminação à população carcerária.
CFESS – Qual é a importância do Serviço Social nesse momento de reordenamento institucional frente às orientações sanitárias?
Reijiane – Neste momento atípico, o Serviço Social está posicionado como uma das profissões da linha de frente do enfrentamento desta pandemia, o que exige a implementação de protocolos de ação relacionados à prevenção e enfrentamento, com o foco na garantia de uma atuação critica, pautada pelos preceitos que permeiam o projeto ético-político da profissão.
O Serviço Social é imprescindível em todas as áreas e, no sistema prisional, não seria diferente. Estamos nas construções dos protocolos, planos emergenciais, nos atendimentos aos/às privados/as de liberdade e seus familiares. Estamos tendo que nos reinventar, porque tudo isso é muito novo para nós. Eu não imaginaria que faria tanto sentido o que o nosso código de ética traz em seu artigo 3º (sobre o dever do/a assistente social atuar em situação de calamidade pública). Se nos derem condições, nós não fugiremos e não vamos nos abster de atender à população.
CFESS – Em Altamira (PA), vocês vivenciaram uma das maiores chacinas no interior das unidades prisionais da história do Brasil. Como os/as assistentes sociais lidam com essa negação de direito à vida e dos direitos humanos?
Reijiane – Exercer a profissão em um ambiente de extrema negação de direitos é o maior desafio que já tive, pois lidamos com correlação de forças e o poder do Estado e da polícia, e o enfrentamento é diário. Não é fácil se desprender dos preconceitos e atuar no acesso a direitos daqueles/as que cometeram um crime, ou foram acusados/as e estão injustamente cumprindo pena.
A chacina em Altamira nos mostrou o quanto o encarceramento não é a saída nesse país, e que é urgente o debate do desencarceramento e abolicionismo penal. A população mais pobre tem o direito de viver.
Os princípios éticos precisam nos acompanhar e a defesa intransigente dos direitos humanos é o que nos ajuda a caminhar, diante da contradição que nos é imposta. Exercer a profissão em um ambiente de opressão e de contradição, seguindo o projeto ético-político, me dá a certeza de que o Serviço Social me escolheu, pois não consigo me ver em outra profissão.
O Serviço Social reconhece o objeto de sua ação em meio às expressões geradas pela questão social deste sistema capitalista, explorador e normalizador. Neste ensejo, atua de maneira desafiadora, sendo requisitado paradoxalmente pelo Estado, para desempenhar suas funções neste espaço permeado de tensões. Sendo assim, a ação profissional, frente a esta negação de direito, ocorre na luta para o reconhecimento deste/a cidadão/ã, pelo respeito à vida, à classe pobre, preta e subalternizada.
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