CRESS-ES entrevista Rachel Gouveia Passos: Dia Nacional da Luta Antimanicomial | CRESS-17

CRESS-ES entrevista Rachel Gouveia Passos: Dia Nacional da Luta Antimanicomial

18/05/2020 as 8:00

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Nesta segunda-feira, dia 18 de maio, é celebrado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Devido a importância da data, o CRESS-ES entrevistou a assistente social Rachel Gouveia Passos, professora lotada na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ) e colaboradora do programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (PPGPS/UFF).

Nossa entrevistada tem experiência tanto na docência quanto na prática profissional, na área de Saúde Mental, e é militante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) e do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial do Rio de Janeiro (NEMLA/RJ). A entrevista foi feita pela assistente social Emilly Marques Tenorio. Confira!

 

CRESS-ES – O mês de maio é um mês importante para a Luta Antimanicomial. Fale um pouco para nós sobre o direcionamento ético e político que marca essa luta e quais as convergências com o Projeto ético-político do Serviço Social.

Rachel Gouveia Passos – Primeiramente desejamos apontar que a Luta Antimanicomial não traz em sua direção uma mera reforma assistencial em saúde mental, ou seja, ela expressa a defesa de um projeto societário radical de transformação. Essa direção pode ser identificada na Carta de Bauru de 1987, expressa através do lema “por uma sociedade manicômio” e na defesa pelo fim das desigualdades de classe, opressões/exploração de gênero, raça/etnia, sexualidade e a favor da superação da propriedade privada. É esse direcionamento ético e político que subsidia a Luta Antimanicomial e direciona os coletivos e movimentos sociais, apontando para a necessidade da extinção da lógica manicomial, assim como da sociedade capitalista.

Em segundo lugar, assinalo que há pontos comuns entre a direção ética e política da Luta Antimanicomial e do projeto ético-político do Serviço Social e que estão vinculados a uma potencialidade revolucionária expressos pelos princípios da liberdade, da emancipação e dos direitos humanos. Tais princípios encontram-se em disputa no interior da Luta Antimanicomial e permeiam os distintos projetos. São eles: 1º) a proposta radical de Reforma Psiquiátrica, pautada nos princípios da Luta Antimanicomial; 2º) a proposta de manutenção da perspectiva manicomial tradicional; 3º) a proposta de uma Reforma Psiquiátrica “simpática” às mudanças de carácter meramente legislativo e assistencial. Logo, é necessário compreendermos que a Luta Antimanicomial não é homogênea e que em seu interior há múltiplas compreensões acerca de seus princípios.

Por fim, em terceiro lugar, podemos destacar que a profissão apresenta uma grande contribuição quando recuperamos o materialismo histórico dialético para a compreensão da realidade, a partir da totalidade, da historicidade e das contradições. Destaco que a predominância dos saberes “psi” do interior do campo – e que também estão em disputa – influenciaram para um certo distanciamento do Serviço Social do debate interno do campo e camuflou as contribuições da categoria na construção da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira.

CRESS-ES – Atualmente vivenciamos a Pandemia Mundial do COVID-19 e muito tem sido falado sobre a intensificação do sofrimento da população neste período diante do isolamento social e da possibilidade de morte eminente.  Quais os desafios para a Política de Saúde mental frente esse cenário?

R. G. P. – Os desafios colocados para a saúde mental no atual contexto de pandemia mundial do COVID-19 são os mais diversos. Nesse sentido, tentarei pontuar alguns que considero relevantes e que estão interseccionalizados com as relações de gênero, raça/etnia e classe.

1. Com o processo de precarização e sucateamento instalado no cotidiano dos serviços de saúde mental temos identificado a ausência de equipamento de proteção individual (EPI) que coloca em risco os trabalhadores e, consequentemente seus familiares. A insegurança e o medo do contágio fazem parte da rotina dos profissionais. Além disso, há também a restrição de outros equipamentos e falta de insumos que são fruto do processo de precarização. Em alguns municípios, como no Rio de Janeiro, profissionais da atenção básica estão com seus salários atrasados nesse momento.

2. Em relação ao distanciamento social podemos sinalizar que teremos severos impactos na saúde mental da população. Esse período de reclusão vem proporcionando mudanças na organização familiar, nas relações sociais e na rotina das pessoas. Essa nova dinâmica pode ocasionar certo sofrimento, aumento da ansiedade e angústia acarretando o adoecimento psíquico, além do consumo prejudicial de álcool e outras drogas. Já existem pesquisas que estão procurando mapear o possível aumento do consumo de substâncias psicoativas.

3. Não podemos esquecer as desigualdades existentes no Brasil e que refletem diretamente no perfil dos usuários atendidos nos serviços de saúde mental. As condições de vida dessa população são marcadas pela violência, pobreza e desigualdade e rebatem nas condições da permanência em casa. Portanto, usuários que frequentavam diariamente os serviços de saúde mental podem não encontrar outras formas de alimentar-se, tomar banho, organizar a medicação e etc. Para alguns os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são o único lugar de cuidado e proteção.

4. Destaco a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados para as mulheres. Devido ao isolamento social e a permanência das pessoas no ambiente familiar ficam a cargo das mulheres organizar e prover os mais diversos cuidados, sejam eles direcionados para as crianças, idosos, pessoas com deficiência grave, doentes crônicos e pessoas em sofrimento psíquico grave que necessitam de suporte para o gerenciamento da dinâmica da vida.

5. Uma outra consequência diz respeito ao processo de luto e a não realização do rito do processo de passagem do ente falecido. Vivemos em uma sociedade que possui certa dificuldade de lidar com a morte e com a supressão do rito fúnebre diversas pessoas apresentarão dificuldades de elaboração do luto, o que pode acarretar em uma intensificação do sofrimento.

6. Não podemos esquecer do aumento da violência doméstica. O isolamento social modificou a dinâmica de homens e mulheres impossibilitando a circulação e ocasionando a permanência constante no espaço doméstico. Além do processo de adoecimento físico teremos severos impactos na saúde mental dessas mulheres, caso elas não sejam mortas pela violência.

CRESS-ES – Considerando que o modelo assistencial da saúde mental tem como base a liberdade e a convivência comunitária, quais saídas podem apontar para garantir o atendimento dos sujeitos nesse cenário?

R. G. P. – A política de saúde mental vem sofrendo com a precarização e o sucateamento ocasionado pela crescente privatização e congelamento dos gastos públicos. Em 2019, a coordenação nacional de saúde mental do Ministério da Saúde lançou uma nota técnica que apontava para o direcionamento do fortalecimento da ampliação do financiamento público para os leitos psiquiátricos e as comunidades terapêuticos. Com a diminuição do investimento nos serviços substitutivos de base territorial, não só por parte do governo federal, mas também pelas esferas estaduais e municipais, temos visto severos impactos na viabilização do cuidado em saúde mental.

Em tempos de pandemia a construção de alternativas para garantir o atendimento para os usuários e familiares da saúde mental vai ser atravessada por esse processo de precarização, sucateamento e não ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Alguns serviços não podem realizar visitas domiciliares devido à ausência de carros, o que impossibilita nesse momento o acolhimento aos casos mais graves e/ou em crise. Além disso, há ausência de outros recursos que são fundamentais para o suporte dos usuários e familiares.

Mesmo com inúmeras dificuldades para operacionalizar o cuidado em saúde mental os serviços substitutivos estão criando alternativas para garantir os atendimentos e suportes para os usuários que já são acompanhados. Devido ao isolamento social vem ocorrendo a suspensão das atividades coletivas, sendo que algumas unidades estão mantendo contato com os casos mais graves e viabilizando suporte por teleatendimento e, até presencialmente, para aqueles que chegam nas unidades. Diversos serviços estão mantendo a porta de entrada e acolhendo as pessoas que necessitam de atendimento especializado. Vem sendo crescendo o encaminhamento de pessoas com ansiedade, angustia e ideação suicida devido a pandemia. Além disso, uma estratégia que considero extremamente relevante e importante é a viabilização do suporte psicossocial para profissionais da saúde que estão em sofrimento e adoecimento psíquico devido ao cenário de pandemia. Esse lugar de gerenciador e matriciador do cuidado em saúde mental no território é do CAPS e, por isso, se faz necessário seu fortalecimento e defesa para que possamos ter a garantia desse suporte comunitário para os mais diversos sofrimentos e adoecimentos psíquicos.

CRESS-ES – Quais os rebatimentos na atuação profissional das assistentes sociais e as contribuições que a profissão tem a oferecer?

R. G. P. – O assistente social é um dos profissionais que fazem parte das equipes multidisciplinares dos serviços substitutivos e está inserido no processo de trabalho em saúde mental. Entretanto, a sua inserção no trabalho coletivo não lhe isenta das suas particularidades profissionais. Os impactos do processo de precarização, sucateamento e o desinvestimento orçamentário que atinge a Política de Saúde Mental e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) rebatem no processo de trabalho coletivo e, consequentemente, nas condições objetivas e materiais das assistentes sociais. A viabilização do cuidado em saúde mental é ofertada a partir da ação coletiva proporcionada pela equipe, compreendendo que o sofrimento psíquico não está isolado dos determinantes sociais da saúde, da relação capital x trabalho e das relações sociais.

No que diz respeito aos rebatimentos no trabalho dos assistentes sociais destacamos que o isolamento social tem trazido desafios para a categoria profissional demandando maior criatividade e atenção para as orientações sanitárias. Esse contexto tem demandado uma maior apropriação das tecnologias e das redes sociais para coletar e compartilhar informações e a realização de orientações e acolhimento, principalmente para situações graves e de crise que demandam maior atenção e cuidado. Além disso, o Serviço Social atua diretamente com a oferta de oficinas, grupos e mobilização dos usuários e familiares, o que está suspenso nesse momento.

Portanto, tornou-se necessário utilizarmos as ferramentas concretas disponíveis e mostrarmos a nossa competência para a construção de possibilidades para o atual cenário. Nesse sentido, assinalo algumas sugestões da contribuição do Serviço Social nos diferentes serviços de saúde mental: 1º) participação nas reuniões de equipe que estão ocorrendo remotamente; 2º) acompanhamento dos casos por contato telefônico e atendimento presencial para aqueles que demandarem, sendo respeitada as orientações sanitárias; 3º) acolhimento e suporte para as famílias que estejam apresentando dificuldades em manejar o cuidado diário do usuário; 4º) articulação com a rede socioassistencial por meio de contato telefônico e redes sociais; 5º) mapeamento das ações comunitárias que estão ocorrendo no território do serviço, afim de contribuir com a mobilização e articulação; 6º) elaboração e socialização de material de orientação para usuários, familiares, profissionais e comunidade acerca do funcionamento e das orientações sanitárias que estão sendo adotados no cotidiano do serviço; 7º) participação no acolhimento dos novos casos; 8º) participação na construção do projeto terapêutico singular para os novos casos; 9º) utilização das redes sociais para mobilização dos usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental, principalmente para as comemorações do 18 de maio; 10º) orientações acerca da concessão dos direitos sociais e trabalhistas que estão postos no contexto de pandemia.

CRESS-ES – Você tem sugestões de leituras ou vídeos para nos aprofundarmos no tema?

R.G.P. – A Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ) está lançando  no mês do assistente social a coletânea Em Tempos de Pandemia: propostas para a defesa da vida e de direitos sociais que é um esforço coletivo para analisar e refletir acerca do atual cenário e seus impactos nos direitos sociais. O mesmo encontra-se disponível no site da ESS/UFRJ. Sinalizo que a presente obra pode contribuir com elementos acerca das refrações ocasionadas no atual contexto brasileiro.

Agora, especificamente, sobre o campo da saúde mental destaco o livro Trabalho, Gênero e Saúde Mental: contribuições marxianas para a profissionalização do cuidado feminino publicado pela Editora Cortez que é fruto da minha tese de doutoramento e para aqueles que possuem interesse pelo tema da saúde mental e o serviço social indicamos a coletânea Serviço Social, Saúde Mental e Drogas publicado pela Editora Papel Social e organizado por Marco José Duarte, Rachel Gouveia Passos e Tathiana Meiry da Silva Gomes. Por fim, sobre indicação de filmes considero fundamental assistirem Bicho de sete cabeças que retrata a experiência do militante Austregésilo Carrano Bueno em hospitais psiquiátricos e os documentários Holocausto brasileiro e Em nome da razão que retratam acerca do Hospital Colônia de Barbacena e estão disponíveis no Youtube.

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