Em 1992, durante a realização do 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, foi criada a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-Caribenhas, estabelecendo o dia 25 de julho como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Em pauta, questões sempre pertinentes na luta dessas mulheres, envolvendo os preconceitos estabelecidos por uma sociedade que prioriza o pensamento e a cultura de uma ideologia machista e racista, em detrimento das condições de vida das mulheres negras.
A busca por representatividade fortaleceu a necessidade de se marcar uma data de celebração mundial. Um dia para lembrar a importância dessas guerreiras, que encaram a luta do dia a dia no trabalho, na família, na escola, na rua e em qualquer ambiente, muitas vezes em condição de desigualdade; e parar marcar e fortalecer a necessidade de continuar enfrentando o racismo, o machismo, o sexismo, a misoginia e a intolerância religiosa.
O CRESS-ES convidou duas mulheres negras que representam bem essa força e essa luta constante, em defesa da igualdade de direitos e na busca por uma sociedade mais igualitária, para celebrarmos o dia 25 de julho. Data que ainda comemora, desde a criação da Lei 12.987, de 2014, o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
Tereza de Benguela foi uma líder quilombola no século 18, do Vale do Guaporé, em Mato Grosso. Ela assumiu a luta da comunidade negra e indígena contra os opressores até a destruição do quilombo. Exemplo de resistência, sua luta e persistência permanecem no presente e ganham força quando somadas às representações atuais de enfrentamento a todo tipo de opressão.
Giselle Ribeiro, assistente social e analista jurídica, e Meyrieli de Carvalho Silva, assistente social e assessora na Subsecretaria de Estado de Política sobre Drogas, desafiam, diariamente, essa sociedade machista e racista. É na luta diária que elas constroem sua representatividade e nos ajudam a lembrar que a resistência continua.
Qual a importância do Dia da Mulher Negra Latino-americana Caribenha?
Giselle – Dar visibilidade a luta da mulher negra contra o racismo. É a mulher negra, a que mais sofre pelas consequências do processo sócio-histórico opressor. Por exemplo, a mulher negra sofre as consequências do extermínio da juventude negra: a cada 23 minutos, um jovem é assassinado no Brasil. Outro exemplo, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), de uma forma geral, as mulheres brasileiras ganham, em média, 76% da remuneração masculina; as mulheres negras recebem ainda menos: 43% dos salários dos homens brancos.
Meyrieli – O dia 25 de julho celebra para nós, mulheres negras, a nossa resistência e organização. Essa data foi criada por e para as mulheres latino-americanas e caribenhas. A data nos ajuda a dar visibilidade para o que nós estamos fazendo e, também, estamos sofrendo. As violações de direitos que perpassam a vida das mulheres negras são estruturais e se fazem presente desde a escravização. A luta e as bandeiras levantadas pelas mulheres negras estão presentes cotidianamente, porém, o dia 25 de julho nos ajuda a propagar na sociedade a perspectiva e o olhar das mulheres negras sobre a defesa da vida.
Você se sente referência a outras mulheres negras?
G – Penso que a nossa referência é uma construção coletiva. Cada uma de nós é referência de luta, resistência, maternidade, beleza, cultura, afeto, entre outros. Sendo assim, somente sou porque muitas antes de mim foram e comigo são referência.
M – Sinto que coletivamente inspiro e sou inspirada pelas mulheres negras. Estamos num círculo de buscar e identificar referências, trajetórias comuns e sonhos que partilhamos. Nesse sentido, estar no lugar de referência nos implica em uma grande responsabilidade e disponibilidade de aprender e construir juntas um lugar de ser e estar nessa sociedade, de modo que este seja numa perspectiva negra e feminista.
Como é atuar a frente de políticas que são demandadas, principalmente, pela população negra?
G – Por trabalhar no campo sócio-jurídico, isto é, na Vara da Infância e da Juventude, com competência para processar e julgar adolescentes em conflitos com a lei, não estou atuando a frente de políticas públicas. Minha atuação está voltada para subsidiar a decisão do magistrado. Nesse sentido, busco contextualizar a dimensão social, econômica, histórica, cultural, familiar e comunitária do adolescente, o apresentando como sujeito de direitos. Nesse percurso, identificamos quais equipamentos e serviços das políticas públicas são acessados ou não pelo adolescente. Em caso de não acesso, realizamos encaminhamentos e/ou assinalamos ao juiz a necessidade. Fazendo o recorte racial e de gênero, podemos verificar que é a população negra a quem mais demanda acesso as políticas públicas. Portanto, num cenário de precarização dessas políticas, de corte de direitos, quem é preta e pobre sente primeiro.
M – Atuar em políticas públicas onde a população negra majoritariamente está representada é um devido não reconhecimento do racismo institucional. A fala “somos todos iguais”, presente nas narrativas dos profissionais, representa a forma como a democracia racial pulsa, não somente nos discursos, mas no modus operadi das políticas públicas. Por isso, atuar nas tais políticas é provocar endogenamente uma série de esforços, sejam junto aos profissionais, junto à população atendida e, numa outra instância, junto aos gestores das políticas públicas. Creio ser um bom começo para dialogar. Mobilizar as profissionais negras para encabeçar esse movimento é fundamental, tanto para contribuir na organização das usuárias atendidas nas políticas públicas, quanto para mobilizar os pares no Serviço Social.
De que forma você contribui ou pode contribuir para que as políticas públicas atendam às mulheres negras sem representar nem reforçar o racismo institucional?
G – Essencial é compreender que o racismo se apresenta de forma diferenciada para mulheres e meninas, contribuindo para a piora da condição de vida, a pobreza, a violência, etc. O racismo institucional apresenta-se no não acesso ou acesso precário às políticas públicas, bem como nas inúmeras formas de obstacularização do acesso ao poder. Ou seja, diz respeito a formas de organização do Estado, suas instituições e políticas que mantém privilégios e hegemonias limitadoras ou negadoras de direitos humanos à população negra. Sendo a categoria de assistentes sociais, no Brasil, majoritariamente empregada pelo Estado, é fundamental apropriar-se da discussão. Nesse sentido, a campanha “Assistentes Sociais no Combate ao Racismo”, do conjunto CFESS/CRESS, representa um importante avanço teórico da categoria e uma excelente oportunidade para os/as profissionais se apropriarem do debate e imprimirem nos instrumentos de trabalho (estudos e relatórios sociais).
M – Primeiro é preciso conhecer de forma sistemática as necessidades e pautas dessas mulheres negras. Não podemos presumir, somente com base em estatísticas, quais são suas demandas. Entender as nuances que atravessam a vida dessas mulheres enquanto classe trabalhadora, (em muitos casos) periféricas e em situação de pobreza e extrema pobreza, também é fundamental. No campo individual, entendo que me apropriar do cotidiano dessas mulheres é essencial para traçar estratégias para não reproduzir, por meio de uma instituição, o racismo. Entretanto, existem limites que estão para além de um fazer individual. As estratégias na luta antirracista precisam extrapolar as quatro paredes de uma sala de atendimento ou de uma comunidade, elas precisam ter como cena central a mobilização e a articulação da população negra (e não negra) no enfrentamento ao racismo institucional.
O que é ser mulher negra latino-americana e caribenha, hoje?
G – É reconhecer a luta das mulheres negras que vieram antes. É admirar e caminhar juntamente com elas, no presente, na busca de uma sociedade mais justa para todas. É me emocionar com cada menina que, ao contrário de mim, identificam cedo todo esse processo perverso e lutar contra ele. Acima de tudo, é reconhecer que ainda há muito o que fazer para, nesta sociedade racista e machista, preservar a vida das mulheres, em especial, a negra.
M – Ser mulher negra latino-americana e caribenha, hoje, é refletir em minha história a luta das mulheres negras que pavimentaram uma estrada para eu passar. E, a partir disso, afirmar um compromisso coletivo de continuar essa trajetória para as que vierem depois de mim. Não podemos parar! Como mulher negra desfruto, hoje, desse orgulho, da vida e da beleza que temos, do pulsar da resistência que cultivamos. Desfruto dos afetos e dos laços que construí e construo a partir das alegrias e das dores de ser uma mulher negra.
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